Preservação do sistema mastigatório, menos dor, melhor sono e agora queda comprovada do hormônio do estresse
Acordar com a sensação de que guerreou a noite inteira, como se tivesse mastigado pedra em vez de descansado. Para muita gente, essa é a rotina silenciosa do bruxismo: músculos da face contraídos, dentes sobrecarregados e um corpo que não “desliga” de verdade. O problema hoje é reconhecido como uma atividade anormal dos músculos mastigatórios, que pode ou não acontecer durante o sono, e que costuma passar anos sem diagnóstico adequado.
Quando esse quadro é tratado do jeito certo, com diagnóstico preciso e acompanhamento por especialista em disfunção temporomandibular (DTM) e dor orofacial, o impacto vai muito além de “parar de ranger os dentes”. Tratar o bruxismo de forma adequada ajuda a preservar o sistema mastigatório, reduz a dor, melhora a qualidade do sono e, como mostram pesquisas recentes, começa a ficar cada vez mais claro que também pode contribuir para regular o cortisol, o principal hormônio do estresse.
“Na prática clínica, nós sempre vimos que os pacientes acordavam menos cansados, com menos dor, depois que começavam a usar uma placa bem indicada. Agora, estudos consistentes têm mostrado que esse efeito vai além do alívio da dor e da proteção dos dentes”, afirma a cirurgiã-dentista Simone Carrara, especialista em DTM e dor orofacial.
Nos últimos anos, trabalhos publicados em 2024 e 2025 reforçaram justamente essa conexão entre bruxismo, tratamento e estresse. Uma revisão recente reuniu estudos de mais de uma década e mostrou que pessoas com bruxismo tendem a apresentar cortisol salivar mais alto, que diminui após o início do tratamento. Em paralelo, um ensaio clínico com acompanhamento de até um ano demonstrou que tanto o uso de placa oclusal quanto programas estruturados de higiene do sono e relaxamento conseguem reduzir o estresse percebido e a atividade de bruxismo em adultos.
Na visão de Simone e do ortodontista Bruno Furquim, doutor em Ortodontia com formação e pesquisa em DTM e dor orofacial, esses dados vêm confirmar, com números, aquilo que o consultório já mostrava há anos: tratar o bruxismo direito muda o jeito como a boca funciona e também como o corpo lida com o estresse.
Quando o leitor se pergunta “afinal, o que é bruxismo?”, a resposta hoje vai além da imagem clássica de alguém rangendo os dentes à noite. Durante muito tempo, bruxismo foi sinônimo de ranger os dentes. Hoje se sabe que ele é uma atividade repetitiva dos músculos da mastigação que pode se manifestar de quatro formas principais: ranger os dentes, apertar os dentes, empurrar ou forçar a mandíbula para frente, para trás ou para os lados (jaw thrusting), ou apenas contrair e “travar” a musculatura da face e da mandíbula, mesmo sem haver contato dentário, mantendo a mandíbula em posição de esforço.
“Isso é essencial para o leigo entender: nem todo bruxista faz barulho ou percebe que está rangendo”, explica Bruno Furquim. “Muitas pessoas apenas contraem a musculatura da face durante o sono e acordam com dor, peso ou cansaço na região, mesmo sem perceber desgaste evidente nos dentes.”
As consequências mais comuns do bruxismo incluem desgaste e fraturas dos dentes, dor na face e na cabeça, sensação de mandíbula cansada, estalos ou travamentos na articulação temporomandibular (ATM) e sono pouco reparador. Esse conjunto de sinais e sintomas costuma ser o que leva o paciente a buscar ajuda, muitas vezes sem saber que o bruxismo está por trás de tudo.
Diante disso, surge outra pergunta frequente: qual é o papel da placa de bruxismo nesse cenário? Na odontologia, uma das principais ferramentas para proteger o sistema mastigatório em pacientes com bruxismo é o aparelho interoclusal rígido, a famosa placa de dormir. Mas ela está longe de ser um acessório genérico ou um simples “protetor de dentes”.
“Não é qualquer placa, nem qualquer molde rápido. É um dispositivo terapêutico, planejado caso a caso, que considera a mordida, a articulação, a musculatura, o padrão de bruxismo e o grau de DTM do paciente”, enfatiza Simone Carrara.
Quando bem indicada e bem ajustada por um profissional com formação em DTM e dor orofacial, a placa pode proteger o sistema mastigatório, reduzindo o risco de desgaste e fraturas; distribuir melhor as forças durante os episódios de bruxismo; reduzir pontos de dor muscular e melhorar a amplitude dos movimentos da mandíbula; contribuir para um sono mais organizado e menos doloroso ao despertar; e, em alguns casos, participar de um ajuste mais amplo na resposta ao estresse, em conjunto com outras intervenções.
“A placa certa, no paciente certo e nas mãos certas muda o dia seguinte — e, muitas vezes, a vida inteira”, diz a dentista Simone Carrara.
Do ponto de vista ortodôntico e funcional, esse equilíbrio também é decisivo. Como ressalta Bruno, se músculos e articulações não estão bem, a estabilidade do tratamento ortodôntico a longo prazo fica em risco, mesmo que os dentes pareçam alinhados.
A popularização do tema nas redes trouxe outra dúvida importante: a placa de bruxismo comprada pronta na internet ou em farmácias é uma opção segura? Apesar de a busca por “placa para bruxismo” ter explodido em sites e redes sociais, especialistas alertam para o risco dessas soluções padronizadas.
“Uma placa mal indicada ou mal ajustada pode aumentar a dor, alterar a mordida, sobrecarregar a articulação e ainda atrasar o diagnóstico de uma DTM moderada ou grave”, ressalta Bruno Furquim.
No caso da DTM, o cuidado precisa ser ainda mais criterioso. “Em alguns casos, a placa é essencial, mas insuficiente”, explica Simone. “Se o quadro articular já está mais avançado, a progressão da doença pode continuar mesmo com o uso da placa, e os sinais e sintomas persistem.”
“É por isso que a DTM não deve ser tratada de forma genérica”, reforça Bruno. “Se não houver um olhar especializado, existe o risco real de progressão silenciosa: o paciente segue usando a placa, mas a articulação continua se deteriorando.”
Nessas situações, o especialista em DTM e dor orofacial avalia a necessidade de outros tipos de intervenção, como fisioterapia orofacial específica, manejo medicamentoso em fases agudas, infiltrações musculares e, em casos selecionados, procedimentos intraarticulares minimamente invasivos em parceria com cirurgiões bucomaxilofaciais. A placa continua sendo importante, mas passa a fazer parte de um plano maior.
Outro ponto que chama a atenção dos pesquisadores é a relação entre bruxismo, sono ruim e hormônio do estresse. O cortisol é um hormônio chave na resposta ao estresse. Em condições normais, ele tem um “relógio” próprio: tende a estar mais alto pela manhã e mais baixo à noite. Quando a pessoa vive em estado de alerta constante, esse padrão pode se desorganizar, com impacto em vários sistemas do organismo.
A revisão publicada em 2025 sobre cortisol e bruxismo reforça essa conexão. Segundo os autores, pessoas com bruxismo têm, em média, cortisol salivar mais alto do que indivíduos sem o problema e, em vários estudos, esses níveis caem após o início do tratamento, seja com placas, terapias combinadas ou outras abordagens conservadoras.
Do lado clínico, o ensaio randomizado publicado no Journal of Prosthodontics em 2025 mostrou que tanto a placa oclusal quanto um programa estruturado de higiene do sono e relaxamento muscular foram capazes de reduzir o estresse percebido e a atividade de bruxismo em até um ano, medidos por escala de estresse e eletromiografia dos músculos mastigatórios. Na prática, tratar o bruxismo bem tratado significa mexer também no modo como o organismo responde ao estresse do dia a dia.
“Quando a dor diminui e o sono melhora, o cérebro entende que não precisa ficar em estado de alerta o tempo todo. É natural que o sistema de estresse, do qual o cortisol faz parte, comece a se ajustar. Não é mágica: é fisiologia bem cuidada”, explica Simone.
Para quem convive com dor e suspeita de bruxismo, uma questão central é saber quando procurar ajuda especializada. Sinais como dor ou peso na face, dor de cabeça ao acordar, sensação de mandíbula cansada ou travada, estalos ou travamentos na ATM, desgaste ou fraturas nos dentes e relatos de que a pessoa range ou aperta os dentes durante o sono indicam que é hora de procurar um profissional com experiência em DTM, bruxismo e dor orofacial.
No fim das contas, o que o leitor precisa guardar é que bruxismo não é só ranger os dentes. Pode ser apertar, empurrar ou forçar a mandíbula para frente, para trás ou para os lados (thrusting) ou apenas contrair os músculos da face, sem barulho. A placa rígida sob medida, feita por especialista, é peça central de proteção e alívio, mas não resolve tudo sozinha. Em DTM moderadas ou avançadas, a doença pode progredir mesmo com placa se não houver abordagem completa. O tratamento correto pode preservar dentes e articulações, reduzir dor, melhorar o sono e participar de um ajuste mais amplo na resposta ao estresse.
“O recado é simples”, conclui Simone Carrara. “Se você acorda com dor, com a mandíbula cansada, ou percebe que está destruindo os dentes, não banalize. Procure um profissional realmente especializado em DTM, bruxismo e dor orofacial. Tratar o bruxismo do jeito certo significa preservar o sistema mastigatório hoje e evitar uma série de problemas amanhã — com menos dor, melhor sono e um corpo inteiro menos em estado de guerra.”
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Fontes científicas (links)
• Galińska W. et al. (2025) – The role of cortisol in etiology and treatment of bruxism – a literature review.
Texto completo / PDF: https://annales.sum.edu.pl/The-role-of-cortisol-in-etiology-and-treatment-of-bruxism-a-literature-review,196260,0,2.html
• Tandon A. et al. (2025, e-pub 2024) – Efficacy of occlusal splint versus sleep hygiene and progressive muscle relaxation on perceived stress and sleep bruxism: A randomized clinical trial.
PubMed: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/39088703/
Revista: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/jopr.13917
• Lobbezoo F. et al. (2013) – Bruxism defined and graded: an international consensus.
PDF: https://nadjagurgel.com.br/wp-content/uploads/2021/05/Bruxism-defined.pdf
• Lal SJ. et al. (atualizado em 2024) – Bruxism Management. StatPearls Publishing.
NCBI Bookshelf: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK482466/

